Entrevista
Poíko
1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
Meu pai sempre tocou muito bem violão. Mão direita cheia de suingue, tudo de ouvido e observação. Nas rodas de sua juventude, a Bossa Nova e Jorge Ben estavam muito presentes e ele foi fisgado pelo divisor de águas que foi o João Gilberto. Lembro quando criança de ser levado por ele ao Cacique de Ramos na época em que trabalhava na antiga Rádio Nacional da década de 80. Meu avô João, pai dele, também arranhava uma viola. Minha primeira memória de paixão pela música foram duas canções que ouvia e cantava no banco de trás junto com o rádio do carro. Com uns 6 anos mais ou menos, me encantei com “Planeta água” do Guilherme Arantes e logo depois com “Você se casou e eu não fui convidado” do Zé Luiz do Império, do Cacique. Curtia muito nas férias ficar tocando as cordas soltas do violão sem nada entender, apenas sentindo. Quando vi um conhecido tocando algumas músicas pedi, aos 11 anos, para fazer aula de violão. Me apaixonei ainda mais pela melodia, já bem no início me arriscando também em composições.
Seguindo, participei de festivais na escola e fora também quando formei minhas primeiras bandas. A princípio um pouco deslocado em bandas de rock com minha viola e depois em trabalhos mais autorais e de músicas populares nacionais. Criações de trilhas sonoras para teatro, cinema e espetáculos de dança começaram a aparecer como mais alternativas, assim como tocar em casas noturnas do Rio, Brasília e Paris. Através de uma amiga da infância, tive acesso ao Núcleo Experimental de Arte-Educação, o NEAE. Pilotando uma Kombi lotada de adereços, figurinos, instrumentos, equipamentos e biombo, viajávamos pelo Rio e fora dele – realizando Arte-Educação pelas escolas públicas e particulares, teatros, hospitais psiquiátricos e em projetos da prefeitura durante muitos anos. Alí foi minha descoberta para a Educação, pela Arte-Educação. Mais do que aprendi sobre Educação na faculdade de licenciatura em música, o que não foi pouco, o NEAE meu deu o caminho direto para o coração de cada aluno.
2. Quais são suas referências no meio musical?
Diretamente, Chiquinho Brazão; baterista e produtor fonográfico. Com Chiquinho aprendi muito sobre ritmo, a importância de se manter o andamento, técnicas de baquetas e vivências em estúdio de gravação de áudio, além da espiritualidade. Juntos fundamos a “Orquestra Bernardo de Percussão” na Vila Cruzeiro, Penha/RJ. Outro grande amigo e referência é o Sidney Mattos, compositor, multi-instrumentista surgido no MAU (Movimento Artístico Universitário, dos anos 70), musicoterapeuta, arte-educador e fundador do NEAE. E claro, nessa ordem, a música brasileira e do mundo: Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Guinga, Chico Buarque, Hermeto Pascoal, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Keith Jarrett, Jaco Pastorius, Pat Metheny, Bobby McFerrin…
3. Quando sua prática musical encontrou o ensino?
Ela foi se formando em um processo contínuo que amadurece até hoje. Esse encontro começa na faculdade, enriquece-se no NEAE e se estabelece no chão da escola. Segue através das experiências, trocas e amadurecimentos, buscando novos e melhores caminhos tendo sempre como base, a criatividade. Nessas trocas o aluno está, certamente, também ensinando. Não só a música mas para além dela. Por isso considero uma formação contínua.
4. Como você vê a música enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
Vejo a música como uma das ferramentas mágicas da arte que possibilita transformações inesquecíveis a cada pessoa envolvida, assim como ao coletivo e seu entorno. O poder da Arte-Educação atua sobre vários aspectos: da auto-estima ao cognitivo, da sociabilidade ao equilíbrio emocional. A escola precisa da música e da arte. A palavra disciplina talvez não seja muito adequada ao ensino musical e artístico enquanto prática, pois o caos está presente. A reorganização do caos, a construção do saber e do musical trazem os benefícios citados justificando sua extrema relevância. Em nossa prática com a ‘Orquestra Bernardo de Percussão’, por exemplo, a busca está na conscientização do aluno para a criação por intermédio do improviso rítmico, pela prática. Passo levadas percussivas simples e estímulo às diversas possibilidades criativas dentro do acompanhamento dessas levadas. Do caos à reorganização, essa consciência costuma os levar à criação de outros ritmos e sugestões para o grupo. Portanto o estímulo está em abrir a tampa do universo criativo, fruindo de maneira segura. Percebo mudanças consideráveis em alunos tímidos e retraídos para uma quase euforia, durante esse processo.
5. De que modo a docência alterou sua relação com a música ou com a criação em geral?
A docência foi aos poucos mais um caminho de criação. Além do fazer musical enquanto instrumentista e compositor, criar aulas para as experiências musicais dos alunos é também muito prazeroso e tem muitas variáveis de criação. Um arranjo musical, brincadeiras com ritmo, com canções, com melodias, pesquisas, composições coletivas. Mas o principal é que a docência colocou minha vaidade enquanto instrumentista e compositor mais guardada. A docência abre novas e nobres gavetas.
6 – Como você vê a regularização do ensino artístico nas escolas públicas e particulares?
Há alguns bons anos a obrigatoriedade do ensino de Música nas escolas públicas e particulares foi regulamentada. Vi, à época, com muito bons olhos. Porém, em meus mais de quinze anos de magistério, só se viu a redução de carga horária no setor particular e rede pública.
Vejo como mais um problema significativo na formação de nossos alunos. A já cansada prática de Secretarias e Direções Pedagógicas para a soberania das matérias tidas como “principais”, desequilibra o processo de ensino-aprendizagem, limitando outras possíveis competências e habilidades. Precisamos ir além do tecnicismo pedagógico. Isso sem falar no movimento recente e insano do “Escola Sem Partido” e a preocupante militarização das escolas. Ler, compreender, produzir e desenvolver um texto claro, de acordo com o que se pensa é fundamental. Entender e mergulhar no imenso universo dos números, das proporções, das porcentagens e tudo mais que a razão matemática nos ensina e oportuniza é também fundamental. Mas não menos importante ou não tão menos importante é o ensino das Artes nas escolas em seus diversos processos: sonoros, cênicos, de sensibilização, de expressão, de movimento e de criação. Oportunizar o aluno a vivenciar, a produzir, a criar, a se sensibilizar, se divertir e se expressar diretamente de corpo e alma e por um pouco mais de tempo, é também muito importante para suas escolhas e formação.
7 – Você mencionou o improviso rítmico como uma prática que estimula o universo criativo do aluno. Poderia elaborar isso?
Sim. Nossa ‘Orquestra Bernardo de Percussão’ existe há mais de uma década. Com a frequência dos ensaios, apresentações e permanência dos alunos na banda, venho, há muito, percebendo que o universo criativo deles é ampliado gradativamente e estimulado a partir do improviso. É nesse momento que ele percebe que as execuções de ideias rítmicas surgem simultaneamente ao prazer em solar. Um admira o solo do outro. Eles percebem também que alguém atravessou ou se sentem realizados ao executar o que se pensou, percebendo que deu certo. Os erros e acertos ensinam. Aquilo que um dia foi solo, incorporado ao repertório servindo como trechos para mudar de um ritmo para outro, uma virada que anuncia essa mudança, ou algo que passa a servir como introdução; ou seja, vamos ampliando nosso repertório, montando e construindo como um lego o quebra cabeça rítmico. Tudo também se forma a partir do improviso, do solo, da espontaneidade. Esses solos, claro, são sempre acompanhados de alguma levada rítmica, seja no olodum, no calango ou até mesmo nos ritmos em 6 por 8.
8 – Em que medida o trabalho com os alunos conflui com e atualiza seu próprio fazer musical?
Na medida em que aprendo musicalmente com eles. Sempre faço uma ligação ancestral. Por convivermos na periferia, a Vila Cruzeiro e todo o Complexo da Penha é mais uma pequena África brasileira. A África é muito tambor, a favela também! Tive, tenho e terei muitos casos de alunos que basta ouvir, uma única vez, qualquer levada, já saem realizando com uma fluência admirável. Os próprios improvisos que são incorporados ao trabalho são grandes atualizações. A convivência, o jeito de ser de cada um, a gírias, as conversas, as trocas, tudo isso atualiza a relação junto as novidades que aparecem a partir do improviso no fazer musical. Temos uma riqueza rítmico-social.
9 – Quais as principais diferenças em trabalhar com jovens e crianças em contraste com adultos?
No ensino musical nunca trabalhei com adultos exclusivamente. Tive casos de alguns professores ou funcionários que convidei para participar dos ensaios. Os adultos, nesses casos, normalmente não se sentem à vontade. Talvez por perceberem estar se nivelando com jovens e crianças, sentindo-se desconfortáveis. Na criança e no adolescente é frequente uma descoberta diferente. Digo diferente, pois me parece uma espécie de ‘déjà vu’, como quem diz: “acho que já vi/ouvi isso em algum lugar.” Creio muito nisso: a ‘Orquestra Bernardo de Percussão’ estimula também essa ancestralidade inconsciente.
Entrevista
Cléia Carvalho Tomás
1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
No antigo 5º ano do ginásio, aos nove anos, tive minha primeira aula de teatro. Antes tinha assistido duas peças infantis. Minha alegria em participar daquelas aulas era enorme. O mundo podia ser todo meu, podia brincar de faz de conta, ser quem eu quisesse e minha timidez, pelo menos naquele espaço, não me atrapalhava. O teatro passou a fazer parte de mim. Anos mais tarde encontrei aquele meu primeiro professor de teatro na UniRio, faculdade em que me formei.
Para chegar até a faculdade de Artes Ciências, meu caminho foi cheio de curvas. Não conseguia enxergar Artes como uma opção de trabalho para mim, mas frequentava o teatro com frequência. Aos 16 anos entrei para a Faculdade de Administração de Empresas, em seguida presto concurso público e passo a ser funcionária pública federal. Me senti livre para voltar a fazer teatro como hobby, já que tinha cumprido objetivo que minha família esperava de mim. Por dois anos fui aluna do curso da Sura Berditchevsky, no Teatro Villa-lobos, com aulas duas vezes por semana e montagem no segundo semestre, onde o improviso era a base para aprender teatro. Em seguida fiz dois cursos livres com o André Paes Leme, um diretor a quem respeito e admiro até hoje. Descobri com ele Nelson Rodrigues e Stanislavski. Quando percebi estava participando de uma montagem profissional com meses de ensaios diários de segunda a sábado. Depois da estreia e do fim da temporada dessa peça, a UniRio passou a ser inevitável.
Artes Cênicas era um curso integral, o que me impossibilitaria de continuar no trabalho. Prestei o vestibular, passei e precisei escolher. Conversei com meus pais que, embora preocupados, não se opuseram a minha decisão de pedir exoneração do meu emprego. Na UniRio me encontrei, e encontrei o meu povo. Nela concluí a Licenciatura e o Bacharelado em Teatro, conheci Augusto Boal e seu Teatro do Oprimido, mestre Paulo Freire, Brecht, o Teatro do absurdo, Ryngaerte, Pavis e tantos outros que me formaram.
2. Quem são suas referências no meio teatral?
Grupo Galpão
Armazém Companhia de Teatro
Companhia dos Atores
Teatro da Vertigem
3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino?
Esse encontro se deu, não só por necessidade financeira, mas por ainda ter em mim aquela aluna encantada com as aulas de teatro da escola, onde me sentia pertencente a um grupo, me sentia segura e amparada. Como atriz não queria fazer teatro apenas como entretenimento, desejava também provocar a reflexão, pela temática e estética escolhidas. Na escola, com os meus alunos, o único compromisso é explorar um tema, e usar o teatro como linguagem para comunicar à plateia. O teatro na escola possibilita o trabalho reflexivo, a capacidade estética e, consequentemente, a formação de um ser humano consciente de suas competências e habilidades.
4. De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
No início da minha prática pedagógica, minha abordagem era essencialista, minha preocupação era o teatro como linguagem e como socializar essa linguagem com os alunos. Com a vivência, fui transformando minha abordagem em contextualista. Existem muitas questões que os alunos trazem para o palco que não fazem parte do meu dia a dia, a realidade da grande maioria dos alunos da escola pública é dura e violenta. No teatro os alunos podem expressar seus sentimentos e ideias. É preciso estar atento ao que eles trazem naturalmente e, às vezes, de forma intuitiva para a cena, para depois propor peças, ou criar textos que falem sobre o que eles desejam.
5. Como você vê o teatro enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
O teatro auxilia no desenvolvimento afetivo, cognitivo e psicossocial. Ele integra, socializa e desenvolve as partes indutiva e racional de cada um através da expressão de suas emoções, levando ao conhecimento de si mesmo e do mundo que o cerca.
6. Você percebe essa presença do teatro também na vida dos seus alunos e alunas? Eles têm o costume de frequentar peças? Os pais incentivam a ida?
Nesses 18 anos como docente na mesma escola, nunca recebi alunos acostumados a frequentar teatros ou museus. Esse interesse costuma ser despertado depois que eles começam a fazer teatro. Aos poucos descobrem que existe a possibilidade de frequentar o teatro e espaços culturais acessíveis. Uma parte dos pais descobre com os filhos esse mundo da Arte e do Teatro e gosta da experiência, outra parte não gosta por questões religiosas ou porque a realidade oferecida ao aluno passa a ser insatisfatória, ele quer mais e isso gera um desconforto na rotina familiar.
7. Você menciona a participação dos seus alunos na problematização do teatro. De que formas são exercitadas as dinâmicas que conciliam essa constante conceituação do que é teatro?
Através de jogos e da encenação. Jogos de Viola Spolin e Augusto Boal são sempre usados nas aulas. O corpo precisa ser expressivo e o improviso é a base. Estímulo constante para que a criação de um texto ou de um roteiro seja coletiva, um texto pode ser um pretexto, e imagens, objetos ou sons podem ser estímulos para o jogo, buscando a desconstrução e a recriação.
8. Como são as técnicas de disciplina empregadas para se manter um grupo cuja dramaturgia se baseia em improviso e despojamento?
As regras são poucas e devem ser obedecidas:
Todos têm o direito de falar, mas precisam escutar;
Todos têm o direito de propor e precisam saber argumentar;
Nem sempre o aluno se sente à vontade para estar em cena, mas é preciso jogar, várias são as funções que ele pode escolher dentro do fazer teatral;
Espaço de jogo é delimitado;
A plateia auxilia ao término da cena, informando se a mensagem foi comunicada e dá sugestões para melhorar a comunicação.
9. A “relação artística umbilical com o seu território”[1] é um lugar de origem que é mantido pelos atores que se formam na Escola? Qual você considera ser a importância dessa formação dentro da favela?
Fundamental. O grupo reflete as tradições e questões do seu território, estabelece diálogos valiosos. Há 18 anos leciono Teatro na EM Profa. Lavínia de Oliveira E. Dória, da 11ª CRE, uma escola de 2 turnos que atende a comunidade do Barbante, próxima ao Aeroporto Internacional Tom Jobim. Uma comunidade sem projetos culturais e dominada por uma facção criminosa diferente da que comanda as outras comunidades da Ilha do Governador. Isso coloca os alunos da Lavínia realmente ilhados, pois não podem circular livremente dentro do bairro. Para a grande maioria, o primeiro contato com o teatro se deu na escola. Ver outras apresentações de teatro fora do ambiente escolar não é uma realidade. Alguns tiveram a oportunidade de apreciar peças de teatro nas igrejas que frequentam, mas nesse caso, nem sempre existe uma preocupação com a linguagem teatral e nem pessoas capacitadas para conduzir o trabalho.
10. De que forma é construída a pesquisa de uma nova peça adaptada? O envolvimento dos alunos é pleno? Vocês sugerem leituras e criam novas dinâmicas a cada adaptação?
Nem sempre a sugestão é bem recebida, o que acho natural e até saudável. O difícil é estar aberto ao diálogo. E esse diálogo talvez seja o grande aprendizado. Ao recusar uma sugestão é preciso fundamentar a negativa e propor alternativas. Algumas vezes o aluno muda de ideia depois do diálogo, ou a professora muda de ideia, ou novas ideias são apresentadas, até que a escolha satisfaça ao grupo. É assim que trabalhamos o teatro em sala de aula, como uma arte coletiva com o objetivo de comunicar. Todos os envolvidos fazem parte da construção e precisam se sentir parte das escolhas feitas.
11. É importante manter viva a origem do grupo de “teatro de guerrilha”? Se sim, sob quais práticas isso é concebido dentro da rotina do grupo?
Se considerarmos ”teatro de guerrilha” como sendo um teatro que se alimenta de uma força vinda da revolta e da imaginação, nossos alunos nos oferecem diariamente esses elementos.
O teatro mostra o mundo e seus problemas. Criar uma cena sobre determinada temática que toma uma posição diante dos problemas da sociedade, reflete uma decisão política. A proposta é observar e agir e refletir e criticar, provocar o movimento, a ação e a mudança, sem perder o foco na comunicação com o público, pois sem ele não existe a transformação.
12. Atuar em uma área violenta limita a circulação de pessoas desejada pelo fazer do teatro. ”Ao lidar com essa realidade, alternamos tristeza e bom humor”. Essa condição torna a prática mais vigilante ou ela é inserida como resistência no exercício do teatro?
Essa condição provoca em mim, em alguns momentos, profunda tristeza e cansaço, e o que me motiva a continuar é a fala do aluno, e principalmente do ex-aluno, que mostra um futuro melhor possível. Hoje, fazer teatro é fazer resistência. Tanto no teatro profissional como no teatro que se faz na escola. Na escola, fazer o teatro acontecer, apesar da falta de estrutura dentro e fora de sala, é resistência.
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[1] https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/teatro-da-laje-diretor-quer-vila-cruzeiro-no-mapa-cultural-do-rio-18949943
Entrevista
Bianca Alves da Costa
1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
Meu encantamento com o teatro começou com a primeira peça que assisti na escola onde estudava, eu devia ter uns 7 anos e lembro que a peça, no pátio da escola, com apenas um ator e uma cortina que fazia o cenário, contava a história de um homem que viajava pelo Brasil e em cada região que ele chegava havia uma música que fazia referência àquele lugar. Lembro da sensação que tive, do encantamento, dos detalhes desse dia. Meu primeiro curso de teatro, fiz aos 15 anos e foi no Sindicato dos Escritores e Autores do RJ, num espaço que havia na Tijuca. A fase final desse curso era marcada por uma troca de textos teatrais que os alunos escreviam e montavam. Lembro que escrevi um texto sobre um grupo de adolescentes e, depois de noites escrevendo, fui ao curso só para entregar meu texto e me despedir dos amigos, pois meus pais iriam me tirar do curso devido as minhas notas na escola, que estavam ruins. Para eles, o vilão desse crime era o teatro. Aos 18 anos entrei para a Universidade Rural onde cursava agronomia e lá, a convite de uma amiga, fiz o teste para a Cia de Teatro da Universidade que se chamava Varal de Caras. Esse foi, definitivamente, meu encontro com o teatro e onde me apaixonei por trabalhar com grupos de teatro. Saí da Universidade, cursei a Cal, e no último período resolvi desistir da carreira, por perceber que, como moradora da zona norte, sem dinheiro, sem família apoiando, as coisas eram quase impossíveis de dar certo e então fui cursar Direito. Na Faculdade de Direito criei uma Cia de Teatro que se chamava Cia dos Empíricos. Nessa companhia, que durou 12 anos, eu atuava, dava aulas e produzia e então percebi que não adiantava, minha vida estava definitivamente ligada ao teatro, então, aos 40 anos larguei o direito e fui cursar Licenciatura em Teatro e me dedicar ao que realmente amava.
2. Quem são suas referências no meio teatral?
Admiro e me inspiro muito no trabalho de vários grupos de Teatro como o Grupo Galpão, Atores de Laura, Armazém Companhia de Teatro, entre outros. Fui muito influenciada pelos trabalhos e direções de Sérgio Brito, Amir Haddad, Augusto Boal entre outros.
3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino?
Quando criei a Cia de Teatro dos Empíricos na Faculdade de Direito e comecei a dar aulas para alunos e professores da faculdade.
4. De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
Comecei a perceber um teatro que é para todos, um teatro possível e criador, que independe do seu prévio conhecimento de técnicas ou teorias, independe até mesmo de você já ter ido ou não ao teatro e assistido alguma peça, mas muito mais potente por suas vivências e sensibilidades.
5. Como você vê o teatro enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
O teatro é uma das formas mais antigas de se expressar, os povos primitivos já faziam teatro para contar histórias sobre Deuses e natureza. No contexto atual acredito que o teatro continua sendo uma das maiores formas de expressão, dando protagonismo e o lugar de fala que os alunos querem, precisam e merecem.
6. Você percebe essa presença do teatro também na vida dos seus alunos e alunas? Eles têm o costume de frequentar peças? Os pais incentivam a ida?
Na realidade escolar em que vivo, dentro de uma comunidade, o único contato que os alunos têm com o teatro é na escola ou na igreja. Quanto à participação no grupo, os pais incentivam, mas existe toda uma preocupação com os horários e com a segurança por serem alunos do primeiro seguimento.
7. Você menciona a participação dos seus alunos na problematização do teatro. De que forma são exercitadas as dinâmicas que conciliam essa constante conceituação do que é teatro?
Durante as atividades e os jogos, os alunos percebem as possibilidades do “fazer teatral”, de como o teatro pode acontecer por diversos caminhos e os resultados que isso pode trazer.
8. Como são as técnicas de disciplina empregadas para se manter um grupo cuja dramaturgia se baseia em improviso e despojamento?
No primeiro momento acredito ser um pouco mais complicado, até porque meu trabalho é com o primeiro seguimento, então preciso ser mais presente para que o jogo aconteça. No segundo momento, quando eles começam a entender como o jogo funciona e perceber o quanto é prazeroso esse fazer, os próprios alunos organizam a disciplina e o trabalho flui de maneira mais livre, sem a minha interferência tão constante.
9. A “relação artística umbilical com o seu território”[1] é um lugar de origem que é mantido pelos atores que se formam na Escola? Qual você considera ser a importância dessa formação dentro da favela?
Acredito que o protagonismo que o teatro traz para os alunos amplia a visão que eles possuem de suas potências e de suas possibilidades, e esse contexto amplia-se também para seu lugar, sua origem e suas raízes.
10. De que forma é construída a pesquisa de uma nova peça adaptada? O envolvimento dos alunos é pleno? Vocês sugerem leituras e criam novas dinâmicas a cada adaptação?
Gosto de trabalhar com a ampla participação dos alunos, desde a escolha do tema à adaptação do texto. Até porque acredito que o teatro não funciona quando é imposto ou quando é tirado o protagonismo do aluno. Deixo isso sempre bem claro, para eles terem a liberdade de criar.
11. É importante manter viva a origem do grupo de “teatro de guerrilha”? Se sim, sob quais práticas isso é concebido dentro da rotina do grupo?
Acho importante, porém não é uma constante no meu trabalho. Por trabalhar com o primeiro seguimento, gosto de alternar o teatro político com o teatro lúdico, principalmente para apresentarmos dentro da própria escola para os alunos pequenos, pois acredito muito na sensibilização e no afeto que o teatro pode trazer.
12. Atuar em uma área violenta limita a circulação de pessoas, desejada pelo fazer do teatro. “Ao lidar com essa realidade, alternamos tristeza e bom humor”. Essa condição torna a prática mais vigilante ou ela é inserida como resistência no exercício do teatro?
Como já mencionei anteriormente, existe toda uma dinâmica diferente no contexto de se trabalhar teatro com o primeiro seguimento. Muitas vezes eles não saem sozinhos da escola e os horários de ensaio também ficam limitados por essa razão. Isso mistura um pouco da problemática da violência com a dependência de alguém para pegá-los ou levá-los aos ensaios.
Em relação à violência, eles sempre trazem essa questão à tona e como trabalhamos com a participação na criação coletiva, esse tema, que faz parte da constante realidade deles, acaba sempre estando presente nas atividades ou nas montagens.
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[1] https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/teatro-da-laje-diretor-quer-vila-cruzeiro-no-mapa-cultural-do-rio-18949943
Entrevista
Tathiana Treuffar Alves
1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
Desde pequena tive muito acesso ao teatro e à leitura e sempre fui muito incentivada a criar. Estudei em escolas particulares que me permitiram desenvolver e explorar esses talentos artísticos. Descobri que queria ser atriz e escritora bem cedo. Aos 14 anos já sabia que faria faculdade de artes cênicas. Meus pais sempre me estimularam nas artes e me apoiaram quando decidi, o que foi uma sorte e uma grande oportunidade. Assistia peças teatrais ainda bem pequena, levada por minha mãe e também nos passeios da escola. Tenho uma lembrança bem antiga do teatro Cacilda Becker, quando fui com a escola assistir à peça Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque. Lembro que antes da peça começar fiquei olhando para o teto do teatro, encantada… outra memória marcante envolve teatro e escola. Tinha 7 anos quando encenei a primeira peça de teatro na escola. Lembro de detalhes até hoje e da felicidade que senti representando. A escola também me apresentou a linguagem do cinema, nas aulas que tive no 2º grau (Ensino Médio). Eu já era cinéfila e amava os filmes nacionais, mas nunca tinha tido aula de cinema, aprender sobre a história do cinema, criar um filme… todas essas experiências foram marcantes para mim e, quando bem mais tarde me tornei professora, tentei proporcionar essas experiências para os meus alunos no ensino público. Fiz alguns cursos de teatro antes de ingressar na faculdade, como a CAL – Casa de Artes de Laranjeiras, Casa de Ensaio, Senac. Entrei no Bacharelado – Curso de Interpretação – aos 18 anos e amei a faculdade. Participei de peças, dentro das práticas de Montagem da Unirio. Fui “Simone Machard” de Brecht, uma experiência inesquecível, e também “Galahad” na peça Merlin, de Tankred Dorst, espetáculo incrível onde ganhamos o VI Festival Carioca de Novos Talentos (1996). Depois viajei pelo mundo por 7 meses, conheci vários países, vivi 5 meses em Madrid onde fiz um curso de cinema de “Dirección Cinematográfica”. Voltei, reingressei na faculdade, agora fazendo Licenciatura em teatro. Em 2001 e 2002 já dava aulas no município e no estado. Fiz pós-graduação Lato Sensu em Educação Estética e comecei minhas práticas artísticas nas escolas. De 2006 a 2013 participei com os alunos da Mostra de Artes da 10ª CRE, com apresentações de peças e, a partir de 2008, também de filmes. O trabalho com cinema na escola iniciou-se em 2008. Em 2016 voltei para faculdade e entrei no curso de Mestrado Profissional em Ensino de Artes Cênicas, com um projeto sobre o trabalho artístico na escola com teatro e cinema ao longo desses anos. Hoje sou mestre em Ensino de Artes Cênicas pela Unirio e me orgulho de ter feito um documentário como trabalho final de curso, onde pude reencontrar meus alunos antigos e juntos pudemos relembrar e refletir sobre a arte no ensino público e nas nossas vidas.
2. Quem são suas referências no meio teatral?
Brecht, Boal, Ryngaert, Shakespeare, Becket, Viola Spolin, Maria Clara Machado… (hoje minhas referências estão muito misturadas com a
licenciatura). Amo as peças da Cia Pequod, com bonecos e animações. Zé Celso e seus “Hamlet” e “Bacantes”, Abujamra com “o Casamento” e “Um Certo Hamlet”, Grupo Galpão e seu “Romeu e Julieta”, Armazém Companhia de teatro e a peça “A Ratoeira é o gato”, Julio Adrião e “A descoberta das américas”, que é um espanto! Bruce Gomlevsky e seu “Ser ou não ser” impecável, dito por ele como um homem-bomba, na peça “Vida o filme” do grupo Dezequilibrados. “Orlando” dirigido pela Bia Lessa com seu cenário incrível… são muitos e muitas.
3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino? De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
É curioso, porque inicialmente queria ser atriz. Descobri cedo que queria seguir essa profissão e fiz a faculdade com esse intuito. Ao fim do Bacharelado, formada como atriz, já não sabia mais se queria seguir essa carreira. Tive oportunidade de viajar, conhecer países, fazer alguns bicos até retornar e me perguntar: e agora? Só sei fazer teatro. Estudei teatro. Vou trabalhar em que? E justamente nesse momento de dúvidas encontrei por acaso uma conhecida da Unirio (a faculdade em que estudei). Conversando sobre essas questões ela me sugeriu que fizesse Licenciatura em teatro. Eu continuaria atuando na área, mas agora com educação e recebendo para isso. Sabemos como é viver de artes no país. E fiz o que ela disse. Estava me permitindo tentar uma coisa nova dentro da minha área. Amei o curso de licenciatura e ao fim dele vieram os concursos públicos para o município e estado e pensei: se eu entrar vou ver qual é. E entrei nos dois. No início, confesso, tinha uma certa vergonha quando encontrava meus amigos atores, como se o estar professora fosse algo menor. E eu mesma pensava que era temporário. Mas, para a minha surpresa, encontrei muito amor ali. Relações preciosas com os alunos e uma vontade grande de fazer arte com eles. Quando vi estava criando peças, textos dramáticos, dirigindo, produzindo, e com uma troca linda com os alunos. Isso foi me motivando muito. Fui percebendo como para os alunos aquelas experiências eram também importantes, quanta criação surgia deles também! Depois veio a vontade de trabalhar com cinema, também na escola. Os alunos super abraçaram as propostas. Quando vi estávamos produzindo curtas metragens, aprendendo juntos essa nova linguagem. A minha mente criativa. Meus alunos e eu motivados. Então, em resumo, acredito que o meu trabalho hoje tem uma importância maior do que ser somente atriz. Estimular os talentos dos alunos, vê-los criando, experimentando, produzindo… me dá muito prazer. Para mim, ser professora me fez uma artista melhor.
Entrevista
Maria Fernanda Lamim
1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
O teatro e a literatura sempre me encantaram, mesmo antes de aprender a ler. Meus pais me levavam com alguma frequência para assistir a espetáculos infantis. Minha brincadeira favorita de infância era “interpretar” as histórias dos discos da Coleção Disquinho usando um saco de roupas velhas como adereços e figurinos. Na adolescência continuei fazendo teatro amador e escrevendo. Fiz alguns cursos livres na Escola Martins Penna. Quando chegou a hora do vestibular, a dúvida foi entre Letras ou Artes Cênicas. Acabei entrando no curso da UFRJ de Direção Teatra no ano de 2000. Uma coisa curiosa é que raríssimas vezes me arrisquei em outras linguagens, como TV e cinema. Sou “bicho de coxia”; e desde 1996 o período mais longo que fiquei longe do palco foi 1 ano, quando parei um pouquinho para ter meus filhos. Trabalhei principalmente no teatro de grupo, feito de forma horizontal, coletiva. Cursei também licenciatura em Teatro na Faculdade Candido Mendes e desde 2010 trabalho como professora de Artes Cênicas nas redes públicas de ensino (estadual e municipal). O trabalho como artista e como arte educadora, formam dois lados da mesma coisa. Ambos se complementam, não há contradição ou antagonismo.
2. Quem são suas referências no meio teatral?
Sempre fui apaixonada por comédia, em todas as suas formas. Estudei e estudo commedia dell’ arte, comédia de improviso, teatro de revista… adoro a profundidade dos personagens cômicos e suas críticas. Portanto, Molière, Arthur Azevedo e Henri Bergson foram fundamentais na minha trajetória como artista. Como arte educadora, Augusto Boal e Viola Spolin são a base da minha prática de sala de aula, e posso dizer que influenciaram também o meu trabalho como diretora.
Alguns diretores contemporâneos, como João Fonseca e Ivan Sugahara, igualmente me instigaram a buscar novas possibilidades de linguagem.
3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino?
Eu já era professora antes de me tornar atriz. No Ensino Médio cursei Formação de professores para ensino Fundamental (curso que já não existe mais). A Educação e o Teatro sempre caminharam juntos na minha trajetória.
4. De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
Ambas se retroalimentam. Eu percebo que as minhas aulas ficam menos dinâmicas quando não estou criando como artista, assim como percebo minha prática artística ganhar horizontes mais amplos quando estou em contato com alunos.
5. Como você vê o teatro enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
Augusto Boal diz em um de seus livros que o Teatro pertence a todos, não apenas a quem detém seus edifícios físicos e estéticos. É uma forma de expressão popular desde seu nascimento. Para além disso, as aulas de Teatro trabalham conceitos fundamentais como a capacidade de trabalhar em equipe, fundamental para a vida em sociedade.
6. Como essas memórias de infância informam o trabalho com crianças?
Acho que essas memórias me fazem ter contato com os processos criativos dos alunos. Claro que cada criança é uma, e a minha vivência não é igual a de todos. Mas penso que o professor que tem contato com seus próprios processos tende a ser mais empático com seus educandos.
7. Você percebe essa presença do teatro também na vida dos seus alunos e alunas? Eles têm o costume de frequentar peças? Os pais incentivam a ida?
Infelizmente, não, principalmente por questões sociais da cidade em que vivemos, o Rio de Janeiro. É uma cidade partida, onde a maioria dos espaços teatrais se concentra na zona sul e centro, com ingressos pouco acessíveis. Boa parte da população não consegue frequentar os teatros por isso. Aliás, parte da minha busca como artista e arte educadora é justamente essa: que a escola seja vista e promovida como um aparelho cultural, lugar que ela deve ocupar cada vez mais na sociedade, na tentativa de diminuir esse abismo.
8. Por que comédia? Como essa vertente dialoga com nosso tempo?
Bom, essa escolha foi bastante subjetiva. Eu admiro muito o poder questionador e desconstruidor da comédia, desde o seu surgimento. É uma excelente linguagem para reflexão e critica, e igualmente apreciada pela maioria dos alunos.
9. Conte-nos mais sobre essas tentativas de buscar novas linguagens. Como se busca algo novo? Ainda faz sentido, em nosso tempo, falar em novidade?
Por um lado, acho que há a sensação de que “tudo ja foi feito/ tentado”. Por outro lado, o espaço cênico permite infinitas experimentações portanto, acredito que dando voz a sujeitos que não costumam ocupar muitos espaços nos depararemos com novas estéticas, novos diálogos.
Entrevista
Veríssimo
1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
Minha primeira experiência formal com o teatro foi na escola, aos 11 anos. Depois voltamos a nos reencontrar quando eu tinha 17 anos, nas festas de São João do bairro onde eu morava, em Olinda (PE), e na militância do Partido Comunista, fazendo teatro de agitprop (agitação e propaganda)
2. Quem são suas referencias no meio teatral?
Bertolt Brecht, Shakespeare, Peter Brook… Por enquanto, todos ainda europeus, mas hei de me descolonizar. Rsrsrsrs
3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino?
Formalmente, no início dos anos 90, quando ingressei na licenciatura em Artes Cênicas, na Universidade Federal de Pernambuco, mas sempre me interessei pela pedagogia brechtiana.
4. De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
Teatro não é um conceito unívoco e a-histórico. Todos que introduziram alguma inovação no teatro e o colocaram em movimento, fizeram isso se colocando, conscientemente ou não, uma questão: o que é teatro? Meus alunos me proporcionam, portanto, a oportunidade de nunca me acomodar, de estar sempre confrontando, desnaturalizando e problematizando o teatro.
5 – Como você vê o teatro enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
São inúmeros os riscos de disciplinarizar o teatro e de “introduzir a desmedida dionisíaca do teatro na moldura apolínea da escola”, como diz Ricardo Japiassu. Então acho que, de certa forma, o papel do teatro na escola é desescolarizar a escola. Brecht diz isso de maneira belíssima quando afirma que a função social mais nobre do teatro é nos proporcionar prazer e que, quem achar que atribuindo outra função ao teatro, transformando-o num mercado abastecedor de moral, estará elevando-o, estará, na verdade, degradando-o. O papel do teatro, diz ainda Brecht, não é libertar o Prometeu Acorrentado, mas proporcionar o PRAZER de fazer isso.
6 – Você percebe essa presença do teatro também na vida dos seus alunos e alunas? Eles têm o costume de frequentar peças? Os pais incentivam a ida?
Sempre que posso os levo para assistir a isso que considera-se o padrão correto de teatro ou levo isso a eles. Acho importante para a ampliação dos seus repertórios. Mas vejo vantagens também no fato de não terem contato com esse padrão hegemônico, pois ficam livres para descobrirem seu teatro.
7- Você menciona a participação dos seus alunos na problematização do teatro. De que forma são exercitadas as dinâmicas que conciliam essa constante conceituação do que é teatro?
Através do estranhamento que eles revelam a respeito de algumas formas e práticas teatrais que eu os apresento e através de suas próprias práticas teatrais. Por exemplo, certo dia eles pediram para improvisar uma cena cujo tema era a escola. Terminada a improvisação, começamos a avaliação e eu perguntei se o aluno que, na improvisação, fazia o personagem de um aluno que falava vários desaforos para a diretora, se ele falaria isso de verdade para a diretora e pus-me a falar sobre verossimilhança, etc. Fui interrompido por uma aluna que contra-argumentou: “Ora, se é para a cena ser igual à realidade e se é para ele agir diante da aluna que tá fazendo o papel da diretora como se estivesse diante da diretora de verdade, então chame logo a diretora de verdade para fazer a cena!”. Têm inúmeras e densas questões implicadas na fala dessa aluna: qual é a relação entre o teatro e o real? O que é teatro e o que é realidade? O teatro é uma reprodução da realidade ou um olhar sobre a realidade, um jogo com a realidade? Como perguntava Brecht, o que nos interessa são as coisas verdadeiras ou como são verdadeiramente as coisas?
8- Como são as técnicas de disciplina empregadas para se manter um grupo cuja dramaturgia se baseia em improviso e despojamento?
Bom, como diz Viola Spolin, prefiro trabalhar com a ideia de envolvimento do que com a ideia de disciplina. De qualquer forma, o princípio é o do acordo grupal: o elenco improvisa, improvisa, improvisa, joga, joga, joga até surgir um acordo grupal. Ao diretor e ao dramaturgo cabe fornecer bases e elementos para a improvisação e dizer se o que surge desse acordo tem comunicabilidade com a plateia.
9- A “relação artística umbilical com o seu território” (https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/teatro-da-laje-diretor-quer-vila-cruzeiro-no-mapa-cultural-do-rio-18949943) é um lugar de origem que é mantido pelos atores que se formam na Escola? Qual você considera ser a importância dessa formação dentro da favela?
Sim, é um lugar de origem, mas que busca falar com a cidade e o mundo. São várias as importâncias dessa formação dentro da favela: a democratização da produção teatral, a criação de um teatro que é compreendido pela plateia porque a compreende e, principalmente, a criação de um vínculo entre palco e plateia que é anterior ao ato artístico e vai além dele. Isso faz do teatro um ato de congraçamento, encontro, festa e celebração.
10- De que forma é construída a pesquisa de uma nova peça adaptada? O envolvimento dos alunos é pleno, vocês sugerem leituras e criam novas dinâmicas a cada adaptação?
Na verdade, só trabalhamos uma vez com adaptação, que foi com o Romeu e Julieta, de Shakespeare, e, para ser sincero, usamos a obra apenas como pretexto para falar da gente. Como disse um amigo, esprememos Shakespeare, tiramos o suco e bebemos. Sim, o envolvimento foi pleno: lemos textos, assistimos filmes, chamamos pessoas para dar palestras sobre o autor e a obra…
11- É importante manter viva a origem do grupo de “teatro de guerrilha”? Se sim, sob quais práticas isso é concebido dentro da rotina do grupo?
Apesar de hoje ver uma carga eurocêntrica muito forte na definição, acho que há algo de muito poético quando o Peter Brook fala do “teatro rústico”, além de indicar um princípio de trabalho (eurocêntrico porque é, mais uma vez, a visão de um europeu sobre o teatro que é feito fora da matriz colonial do poder e tem uma certa idealização do popular): “organizar um espetáculo em condições de ‘rusticidade’ é como fazer uma revolução, pois qualquer coisa que esteja à mão pode ser transformada numa arma”. O que eu procuro fazer é mostrar aos meus alunos a dignidade daquele recurso que foi encontrado, de como é maravilhoso passar a ver como recurso algo que antes não víamos, que “há muitos objetos num só objeto”, como dizia Brecht (uma cadeira pode ser inúmeras coisas, até uma cadeira) e, principalmente, mostrar que aquilo é linguagem.
12- Atuar em uma área violenta, limita a circulação de pessoas desejada pelo fazer do teatro.” Ao lidar com essa realidade, alternamos tristeza e bom humor”. Essa condição torna a prática mais vigilante ou ela é inserida como resistência no exercício do teatro?
Acho que, além de resistência, essa condição gera também invenção, reexistência. O rico de morte também pode ser potência de vida.