Entrevista
Maria Fernanda Lamim

1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
O teatro e a literatura sempre me encantaram, mesmo antes de aprender a ler. Meus pais me levavam com alguma frequência para assistir a espetáculos infantis. Minha brincadeira favorita de infância era “interpretar” as histórias dos discos da Coleção Disquinho usando um saco de roupas velhas como adereços e figurinos. Na adolescência continuei fazendo teatro amador e escrevendo. Fiz alguns cursos livres na Escola Martins Penna. Quando chegou a hora do vestibular, a dúvida foi entre Letras ou Artes Cênicas. Acabei entrando no curso da UFRJ de Direção Teatra no ano de 2000. Uma coisa curiosa é que raríssimas vezes me arrisquei em outras linguagens, como TV e cinema. Sou “bicho de coxia”; e desde 1996 o período mais longo que fiquei longe do palco foi 1 ano, quando parei um pouquinho para ter meus filhos. Trabalhei principalmente no teatro de grupo, feito de forma horizontal, coletiva. Cursei também licenciatura em Teatro na Faculdade Candido Mendes e desde 2010 trabalho como professora de Artes Cênicas nas redes públicas de ensino (estadual e municipal). O trabalho como artista e como arte educadora, formam dois lados da mesma coisa. Ambos se complementam, não há contradição ou antagonismo.

2. Quem são suas referências no meio teatral?
Sempre fui apaixonada por comédia, em todas as suas formas. Estudei e estudo commedia dell’ arte, comédia de improviso, teatro de revista… adoro a profundidade dos personagens cômicos e suas críticas. Portanto, Molière, Arthur Azevedo e Henri Bergson foram fundamentais na minha trajetória como artista. Como arte educadora, Augusto Boal e Viola Spolin são a base da minha prática de sala de aula, e posso dizer que influenciaram também o meu trabalho como diretora.

Alguns diretores contemporâneos, como João Fonseca e Ivan Sugahara, igualmente me instigaram a buscar novas possibilidades de linguagem.

3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino?
Eu já era professora antes de me tornar atriz. No Ensino Médio cursei Formação de professores para ensino Fundamental (curso que já não existe mais). A Educação e o Teatro sempre caminharam juntos na minha trajetória.

4. De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
Ambas se retroalimentam. Eu percebo que as minhas aulas ficam menos dinâmicas quando não estou criando como artista, assim como percebo minha prática artística ganhar horizontes mais amplos quando estou em contato com alunos.

5. Como você vê o teatro enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
Augusto Boal diz em um de seus livros que o Teatro pertence a todos, não apenas a quem detém seus edifícios físicos e estéticos. É uma forma de expressão popular desde seu nascimento. Para além disso, as aulas de Teatro trabalham conceitos fundamentais como a capacidade de trabalhar em equipe, fundamental para a vida em sociedade.

6. Como essas memórias de infância informam o trabalho com crianças?
Acho que essas memórias me fazem ter contato com os processos criativos dos alunos. Claro que cada criança é uma, e a minha vivência não é igual a de todos. Mas penso que o professor que tem contato com seus próprios processos tende a ser mais empático com seus educandos.

7. Você percebe essa presença do teatro também na vida dos seus alunos e alunas? Eles têm o costume de frequentar peças? Os pais incentivam a ida?
Infelizmente, não, principalmente por questões sociais da cidade em que vivemos, o Rio de Janeiro. É uma cidade partida, onde a maioria dos espaços teatrais se concentra na zona sul e centro, com ingressos pouco acessíveis. Boa parte da população não consegue frequentar os teatros por isso. Aliás, parte da minha busca como artista e arte educadora é justamente essa: que a escola seja vista e promovida como um aparelho cultural, lugar que ela deve ocupar cada vez mais na sociedade, na tentativa de diminuir esse abismo.

8. Por que comédia? Como essa vertente dialoga com nosso tempo?
Bom, essa escolha foi bastante subjetiva. Eu admiro muito o poder questionador e desconstruidor da comédia, desde o seu surgimento. É uma excelente linguagem para reflexão e critica, e igualmente apreciada pela maioria dos alunos.

9. Conte-nos mais sobre essas tentativas de buscar novas linguagens. Como se busca algo novo? Ainda faz sentido, em nosso tempo, falar em novidade?
Por um lado, acho que há a sensação de que “tudo ja foi feito/ tentado”. Por outro lado, o espaço cênico permite infinitas experimentações portanto, acredito que dando voz a sujeitos que não costumam ocupar muitos espaços nos depararemos com novas estéticas, novos diálogos.

Entrevista
Veríssimo

1. Como foi sua formação? Fale de modo amplo, livre. Não apenas os cursos, grupos e escolas. Mas as influências orgânicas de outros meios, os encontros do acaso, os encantamentos da infância…
Minha primeira experiência formal com o teatro foi na escola, aos 11 anos. Depois voltamos a nos reencontrar quando eu tinha 17 anos, nas festas de São João do bairro onde eu morava, em Olinda (PE), e na militância do Partido Comunista, fazendo teatro de agitprop (agitação e propaganda)

2. Quem são suas referencias no meio teatral?
Bertolt Brecht, Shakespeare, Peter Brook… Por enquanto, todos ainda europeus, mas hei de me descolonizar. Rsrsrsrs

3. Quando sua prática teatral encontrou o ensino?
Formalmente, no início dos anos 90, quando ingressei na licenciatura em Artes Cênicas, na Universidade Federal de Pernambuco, mas sempre me interessei pela pedagogia brechtiana.

4. De que modo a docência alterou sua relação com o teatro ou com a criação em geral?
Teatro não é um conceito unívoco e a-histórico. Todos que introduziram alguma inovação no teatro e o colocaram em movimento, fizeram isso se colocando, conscientemente ou não, uma questão: o que é teatro? Meus alunos me proporcionam, portanto, a oportunidade de nunca me acomodar, de estar sempre confrontando, desnaturalizando e problematizando o teatro.

5 – Como você vê o teatro enquanto prática social? De onde vem sua relevância como saber específico, a ponto de se tornar uma disciplina escolar?
São inúmeros os riscos de disciplinarizar o teatro e de “introduzir a desmedida dionisíaca do teatro na moldura apolínea da escola”, como diz Ricardo Japiassu. Então acho que, de certa forma, o papel do teatro na escola é desescolarizar a escola. Brecht diz isso de maneira belíssima quando afirma que a função social mais nobre do teatro é nos proporcionar prazer e que, quem achar que atribuindo outra função ao teatro, transformando-o num mercado abastecedor de moral, estará elevando-o, estará, na verdade, degradando-o. O papel do teatro, diz ainda Brecht, não é libertar o Prometeu Acorrentado, mas proporcionar o PRAZER de fazer isso.

6 – Você percebe essa presença do teatro também na vida dos seus alunos e alunas? Eles têm o costume de frequentar peças? Os pais incentivam a ida?
Sempre que posso os levo para assistir a isso que considera-se o padrão correto de teatro ou levo isso a eles. Acho importante para a ampliação dos seus repertórios. Mas vejo vantagens também no fato de não terem contato com esse padrão hegemônico, pois ficam livres para descobrirem seu teatro.

7- Você menciona a participação dos seus alunos na problematização do teatro. De que forma são exercitadas as dinâmicas que conciliam essa constante conceituação do que é teatro?
Através do estranhamento que eles revelam a respeito de algumas formas e práticas teatrais que eu os apresento e através de suas próprias práticas teatrais. Por exemplo, certo dia eles pediram para improvisar uma cena cujo tema era a escola. Terminada a improvisação, começamos a avaliação e eu perguntei se o aluno que, na improvisação, fazia o personagem de um aluno que falava vários desaforos para a diretora, se ele falaria isso de verdade para a diretora e pus-me a falar sobre verossimilhança, etc. Fui interrompido por uma aluna que contra-argumentou: “Ora, se é para a cena ser igual à realidade e se é para ele agir diante da aluna que tá fazendo o papel da diretora como se estivesse diante da diretora de verdade, então chame logo a diretora de verdade para fazer a cena!”. Têm inúmeras e densas questões implicadas na fala dessa aluna: qual é a relação entre o teatro e o real? O que é teatro e o que é realidade? O teatro é uma reprodução da realidade ou um olhar sobre a realidade, um jogo com a realidade? Como perguntava Brecht, o que nos interessa são as coisas verdadeiras ou como são verdadeiramente as coisas?

8- Como são as técnicas de disciplina empregadas para se manter um grupo cuja dramaturgia se baseia em improviso e despojamento?
Bom, como diz Viola Spolin, prefiro trabalhar com a ideia de envolvimento do que com a ideia de disciplina. De qualquer forma, o princípio é o do acordo grupal: o elenco improvisa, improvisa, improvisa, joga, joga, joga até surgir um acordo grupal. Ao diretor e ao dramaturgo cabe fornecer bases e elementos para a improvisação e dizer se o que surge desse acordo tem comunicabilidade com a plateia.

9- A “relação artística umbilical com o seu território” (https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/teatro-da-laje-diretor-quer-vila-cruzeiro-no-mapa-cultural-do-rio-18949943) é um lugar de origem que é mantido pelos atores que se formam na Escola? Qual você considera ser a importância dessa formação dentro da favela?
Sim, é um lugar de origem, mas que busca falar com a cidade e o mundo. São várias as importâncias dessa formação dentro da favela: a democratização da produção teatral, a criação de um teatro que é compreendido pela plateia porque a compreende e, principalmente, a criação de um vínculo entre palco e plateia que é anterior ao ato artístico e vai além dele. Isso faz do teatro um ato de congraçamento, encontro, festa e celebração.

10- De que forma é construída a pesquisa de uma nova peça adaptada? O envolvimento dos alunos é pleno, vocês sugerem leituras e criam novas dinâmicas a cada adaptação?
Na verdade, só trabalhamos uma vez com adaptação, que foi com o Romeu e Julieta, de Shakespeare, e, para ser sincero, usamos a obra apenas como pretexto para falar da gente. Como disse um amigo, esprememos Shakespeare, tiramos o suco e bebemos. Sim, o envolvimento foi pleno: lemos textos, assistimos filmes, chamamos pessoas para dar palestras sobre o autor e a obra…

11- É importante manter viva a origem do grupo de “teatro de guerrilha”? Se sim, sob quais práticas isso é concebido dentro da rotina do grupo?
Apesar de hoje ver uma carga eurocêntrica muito forte na definição, acho que há algo de muito poético quando o Peter Brook fala do “teatro rústico”, além de indicar um princípio de trabalho (eurocêntrico porque é, mais uma vez, a visão de um europeu sobre o teatro que é feito fora da matriz colonial do poder e tem uma certa idealização do popular): “organizar um espetáculo em condições de ‘rusticidade’ é como fazer uma revolução, pois qualquer coisa que esteja à mão pode ser transformada numa arma”. O que eu procuro fazer é mostrar aos meus alunos a dignidade daquele recurso que foi encontrado, de como é maravilhoso passar a ver como recurso algo que antes não víamos, que “há muitos objetos num só objeto”, como dizia Brecht (uma cadeira pode ser inúmeras coisas, até uma cadeira) e, principalmente, mostrar que aquilo é linguagem.

12- Atuar em uma área violenta, limita a circulação de pessoas desejada pelo fazer do teatro.” Ao lidar com essa realidade, alternamos tristeza e bom humor”. Essa condição torna a prática mais vigilante ou ela é inserida como resistência no exercício do teatro?
Acho que, além de resistência, essa condição gera também invenção, reexistência. O rico de morte também pode ser potência de vida.